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O nome dela é Júlia




     O cheiro dela sempre estava em mim. Eu, deitado naquela minha rede barata na varanda, escutei suas batidas na porta. Como sabia que era ela? É porque ela batia sem espaço de tempo, como se estivesse fugindo da morte e ali era a salvação. Fui montando o meu sorriso que era dela e chamei de meu dengo. Encaixei meus dedos nos dela e a puxei ao som de Cícero.  Não, isso não acontecia todos os dias e nem sempre meu humor estava naquela medida, mas esqueci de mim um pouquinho e brinquei com ela. Dancei com ela durante alguns segundos: aqueles seus olhos fechados, corpo leve e sorriso nascendo. Ainda não disse o nome dela, não foi? O nome dela é Júlia. Júlia de 23 anos, ainda voava como criança e tinha um dom de pintar um quadro mais louco que o outro. Finalmente ela ficou sem fôlego e correu para cozinha. Escutei da sala a geladeira se abrindo e a água sendo colocada num dos copos americanos.

    Essa menina tinha lá seus problemas e queria esconder de todo mundo. Sempre tinha vontade de jogar tudo pro alto e viver a maior aventura da sua vida: comprar um trailer e viajar o mundo. Dizia que não fazia isso porque gostava da mordomia de acordar cedo e ter pão quentinho na padaria, do seu banheiro, do seu quarto tão bagunçado e cheio de livros ao chão. E da garantia que gastaria suas economias no banco com pequenas viagens e perfumes. Ela ama perfumes. "Vem cá", chamei com jeitinho e ela deitou-se ao meu lado. Ela não quis falar sobre os seus problemas daquela tarde, só queria ficar perto de mim e se sentir melhor. Senti vontade de perguntar o porquê d'eu ser seu remédio, mas ela ficaria ofendida, ela fica ofendida por pequenas coisas e me contentei apenas com o seu silêncio. 

    Começou a falar do vizinho que não respeitava as paredes finas que dividiam seu apartamento do dele e que ele passava a madrugada toda assistindo filme pornô, e ela sabia disso porque ele se sentia dentro do filme e interpretava gemidos alto e feio. Alto e feio, ela enfatizou. Dei aquela risada que eu sabia que ela gostava, mas que eu dei porque realmente tinha sido engraçado e não conseguia esconder isso dela. Conheci Júlia na biblioteca. Pensou num ambiente de paz? Mas foi ao contrário, tudo era ao contrário com ela. Discutia com um cara porque ele não concordava em ceder o livro que, por ela, o tinha encontrado primeiro. Eu fui o intercessor da confusão porque o livro estava reservado pra mim.

    Deixando essa história de como a conheci de lado e se focando nos problemas que Júlia passara naquela tarde, eu não sei o que dizer. Como eu disse, ela tinha lá seus problemas e muitos deles envolviam conflitos com ela própria. Um dia queria ao cinema, andar por aí, conversar até altas horas. Em outro dia queria ficar trancada em casa, tocar o seu piano e cantar alto enquanto pintava. Júlia era uma das aquelas mulheres que ainda estava tentando se encontrar e ficava com medo quando alguém chegava muito perto de encontrá-la primeiro. Tinha receio de estar fazendo tudo errado e sofrer as consequências em público. Ela não tinha medo de viver, afinal, nela tinha uma alma de aventura. Ela só tinha medo de não ser. Ela se autodefiniu um experimento - tinha uma melodia de paz, mas que a tradução era de dor.

Na realidade, Júlia tinha sempre medo de amar, não importa o que fosse, ela tinha medo disso. Suas histórias de amores errados, perdidos e ainda doídos eram relatos que ela me contava de relance, quando tinha vontade. Então, no final disso tudo, era bom saber que de alguma maneira eu era o seu remédio. Eu só deveria ter cuidado para não ficar fora da validade.

Amar também é um risco.



Comentários

  1. Você transcorre a história com um talento soberbo Arianne. Vi toda a imagem conduzida por essas palavras tão cuidadosamente construídas. Parece melodia composta a dedos finos de poesia.

    O moço que fala um pouco da moça. Retrato despretensioso que apenas tende a falar, a insinuar os detalhes no mistério que envolvem a multiplicidade da moça. Mulher de facetas variadas, de sentimentos alternados, uma hospedeira comum da transitoriedade humana, da nem tão comum maneira de ser, mas natural em ser.

    É um texto que ama, que dedilha música e compõe rima. Deixa encantos guardados na mão. Amar é um risco. Um risco que ele aceitou. E só os que verdadeiramente amam encaram. Um remédio. Ser a cura.

    Lindo! Lindo!
    Você é mestra em contos...
    Que jeito tão suave de escrever. Apaixonante.

    Quando lançar o seu livro me avisa. Serei o primeiro a comprar.

    Beijo!

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    1. Alexandre, chega fiquei sem palavras para dizer o quanto me emociona comentários assim. Eu sei que muitas pessoas leem e não sabem como descrever o quanto gostaram do texto, mas quando elas conseguem, como você fez, eu fico emocionada. É maravilhoso saber que consegui transmitir e tocar o leitor desse jeito.

      Vou avisar, sim! Hahaha Será mesmo, ok? Quero ver! Obrigada pelo imenso carinho.

      beijo

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    2. Arianne, alguns textos são tão carregados em sentimentos, que é difícil desfiá-lo. Eu sinto imensa dificuldade em perceber alguns textos. O seu é um desses que se aprofunda de maneira singular, e portanto, guarda belezas nas entrelinhas. Li algumas vezes para chegar ao que senti, mas não creio que soube por completo. Tua escrita é firme, intensa e desafia o leitor. Gosto de desafios. Porque aí me inteiro no texto, me faço parte dele.

      Fico realmente lisonjeado por ter gostado, por ter divulgado no facebook.

      Se eu serei o primeiro a comprar? Não duvide moça, não duvide. O que falo eu cumpro.
      Quando este dia chegar, se lembrará do meu comentário. rsrs

      Beijo carinhoso!

      ps: Não lembro se deixei convite, mas caso tenha vontade, venha me visitar no meu ... rs :)

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  2. Faz muito tempo que não me deparava com textos tão lindos. Eu consigo me imaginar na cena sem nenhum empecilho. Suas palavras me puxam e me fazem deslizar para dentro dos acontecimentos, é uma experiência deslumbrante. Obrigada por me proporcionar isso. Quando começo a ler simplesmente não consigo parar.

    E a Júlia? Linda. Gostei tanto dela que me deu até vontade de encontrar com ela por ai, só pra ouvir o silêncio, ou conversar, quem sabe cantaria um pouco. Não sei, tudo tão perfeito que parece real. Gostaria de viver algo parecido.

    Parabéns por esse talento e mais uma vez muito obrigada por compartilhar isso aqui, esse blog já se tornou um dos meus preferidos, pela emoção que sinto a casa frase.

    Um xero, querida escritora.

    www.eraoutravezamor.blogspot.com

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    1. May, sempre é tão bom te ter por aqui! Falo de coração. Essa Júlia encanta mesmo. Ela parece ter um pouquinho de cada um de nós, não é verdade? O seu cantinho também é lindo, é uma pena que ande tão sem tempo para visitar os meus queridos, como você!

      E, sim, é emoção em cada frase.
      Obrigada, mais uma vez.

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  3. Amar também é um risco. Verdade.
    Me encaixei em várias situações desse texto. Acho que muitas meninas também.

    E realmente, muitas vezes estamos cheios de problemas, mas não queremos falar, queremos um aconchego, um abraço, um colo quente.

    Beijo

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    1. Lay, você é um amor! É tão bom saber que outras pessoas se encaixam no texto da gente.

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  4. Vai escrever bem assim lá no mato, moça! ♥

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  5. você acaba se encontrando em cada texto, num paragafo, numa linha, numa frase que seja.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Adorei a história. Não é superficial e nem fútil. Pude sentir que você colocou sua alma pra redigir as palavras. Gostei da descrição da personagem... fez-me imaginar como seria ela se fosse real.
    E eu já decidi. Quero uma Júlia pra mim!

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    1. É tão bom quando sentem que coloquei a alma nos textos. Obrigada, Rodrigo! E cuidado quando encontrar uma Júlia.

      beijos

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  8. Que lindo. Fiquei com vontade de postar alguns trechos no Facebook. Também adorei a música. Atualmente tenho muito medo de escrever sobre amores, paixões, envolvimento.

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    1. Obrigada, Jefferson! Pode postar trechos no facebook, ta? Sem problemas! E sobre ter adorado a música... Bem, é Cícero, né? A voz dele encanta.

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  9. Só acho que o nome dela não era Júlia.

    Amo aqui, beijo no coração.

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  10. Texto lindo Ari.
    Só vim lê-lo completo agora, adorei.
    "Júlia era uma das aquelas mulheres que ainda estava tentando se encontrar e ficava com medo quando alguém chegava muito perto de encontrá-la primeiro."
    E ah, amar é mesmo um risco, mas um risco que vale a pena correr.

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    1. Metade de mim diz que vale a pena e a outra metade diz que não. :(

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  11. _Amar também é um risco...Belo inicio, lindo meio e apoteótico final, vc deixa transcorrer alma e coração em cada linha, aventura e premeditação em cada paragrafo, por isso o tio Castanha é um viciado em ler e tentar interpretar as delicias q a poetiza deixa-nos, pra vc bjos, bjos e bjossssssssssssssss

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    1. Oh, Castanha! Como é bom te sempre por aqui! Obrigada pelo carinho.

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